E quando falo em gente necessitada, não refiro-me apenas à matéria, mas a toda a sorte de valorosos "bens" que podemos compartilhar: um prato de comida, um olhar desprovido de julgamento, um pouco de tempo dedicado à escuta da expressão do outro, enfim dádivas tangíveis e intangíveis.
Porém, na maioria das vezes em que estamos concentrados em nossos afazeres, nossas preocupações, nossas buscas e até em nossos prazeres, tendemos a não perceber esse(a) a quem chamamos outro(a). Esse fenômeno parece-me típico de nossa época, cheia de seduções e convites para a manifestação do individualismo em detrimento da legitima expressão da individualidade que reconhece a si e ao tudo que está fora de si.
Mas, é tempo de fortalecer em nós a capacidade humana de fazer o bem, de genuinamente promover o encontro do próprio EU com o EU do(a) outro(a), de fazermos isso sem nos perdermos no(a) outro(a) e sem que o(a) outro(a) se perca em nós. Havendo apenas um reconhecimento de que somos parte de um todo, qualquer que seja a nossa condição socioeconômica.
A história que descreverei abaixo, extraída do livro O Quarto Rei Mago, de Henry Van Dyke, é um belo e inspirador exemplo de doação, de encontro genuíno com outros EUs. Talvez, em nosso tempo, não seja necessário abrir mão de tudo que nos é caro, mas desenvolver um olhar amoroso, privado de julgamentos já é um bom começo.
E conectado a esse tema, percebo as conhecidas palavras de São Paulo: “Se eu falar as línguas dos anjos; se tiver o dom de profecia, e penetrar todos os mistérios; se tiver toda a fé possível, a ponto de transportar montanhas, mas não tiver caridade, nada sou. Entre essas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade, a mais excelente é a caridade”. Paulo define a verdadeira caridade não somente na beneficência, mas no conjunto de todas as qualidades do coração, na bondade e na benevolência para com o(a) próximo(a).
E a história de Artaban, na minha opinião, corrobora essas palavras.
Artaban era médico e um homem de posses. Tinha a fisionomia de um sonhador, a mente de um sábio e um coração manso.
Seguidor de Zoroastro, numa noite se reuniu em conselho com nove membros da mesma seita e lhes falou sobre a nova estrela que vira e o seu desejo de segui-la. Disse-lhes:
- Os meus três amigos Gaspar, Melchior, Baltazar e eu, vimos a grande luz brilhante de uma nova estrela há vários dias e vamos sair juntos para Jerusalém para ver e adorar o Prometido, o Rei de Israel. Vendi a minha casa e tudo o que possuo e comprei estas jóias: uma safira, um rubi e uma pérola para oferecer como tributo ao Rei.
Artaban preparou o seu melhor cavalo e de madrugada saiu às pressas, pois, para encontrar no dia marcado com seus companheiros de viagem, que já estavam a caminho, ele precisava cavalgar noite e dia. Já estava escurecendo e ainda faltavam mais ou menos três horas de viagem para chegar ao ponto de encontro quando, na estrada, perto de umas palmeiras, o seu cavalo, pressentindo alguma coisa desconhecida, parou junto a um objeto escuro perto da última palmeira.
Artaban desmontou. A luz das estrelas revelou a forma de um homem caído. A sua pele estava seca e amarela e o frio da morte já o envolvia. E Artaban carregou-o para a sombra de uma palmeira e tratou-o por muitos dias até que ele se recuperou.
- Quem és tu?" perguntou ele ao mago.
- Sou Artaban e vou a Jerusalém à procura daquele que vai nascer: O Príncipe da Paz e Salvador de todos os homens. Não posso me demorar mais, mas aqui está o restante do que tenho: pão, vinho e ervas curativas."
Assim, já era muito mais de meia noite e vários dias mais tarde quando Artaban montou de novo o seu cavalo e prosseguiu ao encontro de seus amigos.
Aos primeiros raios do sol, chegou ao lugar do encontro mas, os três magos já não mais ali estavam. Artaban desmontou e ansioso, estudou todo o horizonte. Nem sinal da caravana de camelos dos seus amigos! Então entre uma pilha de pedras achou um pergaminho e a mensagem:
- Não pudemos esperar mais, vamos ao encontro do Rei de Israel. Siga-nos através do deserto.
Então, Artaban continuou a via pelo deserto e finalmente chegou a Belém. Mas as ruas da pequena vila pareciam desertas. Pela porta aberta de uma casinha pobre, Artaban ouviu a voz de uma mulher cantando suavemente. Entrou e encontrou uma jovem mãe acalentando o seu bebê.
A Jovem mãe colocou o bebê no leito e preparou um almoço para o estranho hospede que veio à sua casa. Subitamente, ouviu-se uma grande comoção nas ruas: gritos de dor, o chorar de mulheres e o clamor:
- Soldados! os soldados de Herodes estão matando as nossas crianças!
A jovem mãe, branca de terror escondeu-se no canto mais escuro da casa, cobrindo o filho com o seu manto para que ele não acordasse e chorasse.
Mas, Artaban colocou-se em frente à porta da casa impedindo a entrada dos soldados. Um capitão aproximou-se para afastá-lo, mas Artaban, fitou o soldado um instante e lhe disse:
- Estou sozinho aqui, esperando para dar esta joia ao prudente capitão que vai me deixar em paz.
Os olhos do capitão brilharam com o desejo de possuir tal joia, então disse aos seus soldados:
- Marchem, Avante! Não há criança aqui!
E assim, Artaban, seguiu viagem passando por lugares onde a fome era grande. Fez a sua morada em cidades onde os doentes morriam na miséria. Em toda a população de um mundo cheio de angústia ele não achou ninguém para adorar, mas muitos para ajudar. Ele alimentou os que tinham fome, cuidou dos doentes, e confortou os prisioneiros...
E os anos passaram... muitos anos passaram. Os cabelos de Artaban já eram brancos como a neve nas montanhas. Velho, cansado e ainda um peregrino, estava novamente em Jerusalém onde havia estado muitas vezes na esperança de achar a família de Belém.
Os filhos de Israel estavam agora na cidade santa para a festa da Páscoa do Senhor e havia uma agitação e excitamento singular. Vendo um grupo de pessoas da sua terra, Artaban lhes perguntou o que se passava e para onde o povo se dirigia.
- Para o Gólgota! Dois ladrões vão ser crucificados e com eles, um homem chamado Jesus de Nazaré, que dizem, fez coisas maravilhosas entre o povo. Mas os sacerdotes exigiram a Sua morte, porque disse ser o Filho de Deus.
Artaban pensou: os caminhos de Deus são mais estranhos do que o pensamento dos homens. Agora é o tempo de oferecer a minha pérola para livrar da morte o meu Rei!
Ao seguir a multidão em direção ao portal de Damasco, um grupo de soldados apareceu arrastando uma jovem rapariga com vestes rasgadas e o rosto cheio de terror. Ao ver o mago, a jovem reconheceu-o como da sua própria terra e libertando se dos guardas atirou-se aos pés de Artaban e implorou:
- Tenha piedade, pelo Deus da pureza, salva-me! Meu pai era mercador na Pérsia, mas faleceu e agora vão me vender como escrava para pagar seus débitos! Salva-me!
Artaban tremeu. Era o velho conflito da sua alma entre a fé, a esperança e o impulso do amor. E agora? Uma coisa ele sabia: Salvar essa jovem indefesa era um gesto de amor. E não é o amor a luz da alma?
Ele tirou a pérola de junto ao seu coração. Nunca ela pareceu tão luminosa! Colocou-a na mão da moça e disse:
- Este é o teu pagamento, o último dos tesouros que guardei para o Rei!
Enquanto ele falava uma escuridão profunda envolveu a terra, que tremeu convulsivamente!
- O que tenho a temer, pensou ele, ...e para que viver? Não há mais esperança de encontrar o Rei, a procura terminou, eu falhei.”
Por 33 anos eu te procurei, mas nunca vi a tua face, nem te servi, meu Rei!
E uma voz suave veio dos céus.
- Em verdade, em verdade vos digo que quando o fizeste a um destes meus irmãos a mim o fizeste!
Uma alegria radiante iluminou a face calma de Artaban.
Um suspiro longo e aliviado saiu de seus lábios.
A viagem para ele havia terminado.
O quarto mago, Artaban, compreendeu que havia encontrado o seu Rei durante toda a sua vida!