segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O Quarto Rei Mago

Quase que diariamente eu passo sob um viaduto que sustenta o trafego de automóveis, muitos deles de alto luxo, cujo preço daria para comprar moradia para as pessoas que fizeram dessa via seu teto. Veículos conduzidos por gente que, provavelmente, nem desconfia que logo abaixo há outras gentes necessitadas.

E quando falo em gente necessitada, não refiro-me apenas à matéria, mas a toda a sorte de valorosos "bens" que podemos compartilhar: um prato de comida, um olhar desprovido de julgamento, um pouco de tempo dedicado à escuta da expressão do outro, enfim dádivas tangíveis e intangíveis.

Porém, na maioria das vezes em que estamos concentrados em nossos afazeres, nossas preocupações, nossas buscas e até em nossos prazeres, tendemos a não perceber esse(a) a quem chamamos outro(a). Esse fenômeno parece-me típico de nossa época, cheia de seduções e convites para a manifestação do individualismo em detrimento da legitima expressão da individualidade que reconhece a si e ao tudo que está fora de si.

Mas, é tempo de fortalecer em nós a capacidade humana de fazer o bem, de genuinamente promover o encontro do próprio EU com o EU do(a) outro(a), de fazermos isso sem nos perdermos no(a) outro(a) e sem que o(a) outro(a) se perca em nós. Havendo apenas um reconhecimento de que somos parte de um todo, qualquer que seja a nossa condição socioeconômica.

A história que descreverei abaixo, extraída do livro O Quarto Rei Mago, de Henry Van Dyke, é um belo e inspirador exemplo de doação, de encontro genuíno com outros EUs. Talvez, em nosso tempo, não seja necessário abrir mão de tudo que nos é caro, mas desenvolver um olhar amoroso, privado de julgamentos já é um bom começo.

E conectado a esse tema, percebo as conhecidas palavras de São Paulo: “Se eu falar as línguas dos anjos; se tiver o dom de profecia, e penetrar todos os mistérios; se tiver toda a fé possível, a ponto de transportar montanhas, mas não tiver caridade, nada sou. Entre essas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade, a mais excelente é a caridade”. Paulo define a verdadeira caridade não somente na beneficência, mas no conjunto de todas as qualidades do coração, na bondade e na benevolência para com o(a) próximo(a).

E a história de Artaban, na minha opinião, corrobora essas palavras.

Artaban era médico e um homem de posses. Tinha a fisionomia de um sonhador, a mente de um sábio e um coração manso.

Seguidor de Zoroastro, numa noite se reuniu em conselho com nove membros da mesma seita e lhes falou sobre a nova estrela que vira e o seu desejo de segui-la. Disse-lhes:

- Os meus três amigos Gaspar, Melchior, Baltazar e eu, vimos a grande luz brilhante de uma nova estrela há vários dias e vamos sair juntos para Jerusalém para ver e adorar o Prometido, o Rei de Israel. Vendi a minha casa e tudo o que possuo e comprei estas jóias: uma safira, um rubi e uma pérola para oferecer como tributo ao Rei.

Artaban preparou o seu melhor cavalo e de madrugada saiu às pressas, pois, para encontrar no dia marcado com seus companheiros de viagem, que já estavam a caminho, ele precisava cavalgar noite e dia. Já estava escurecendo e ainda faltavam mais ou menos três horas de viagem para chegar ao ponto de encontro quando, na estrada, perto de umas palmeiras, o seu cavalo, pressentindo alguma coisa desconhecida, parou junto a um objeto escuro perto da última palmeira.

Artaban desmontou. A luz das estrelas revelou a forma de um homem caído. A sua pele estava seca e amarela e o frio da morte já o envolvia. E Artaban carregou-o para a sombra de uma palmeira e tratou-o por muitos dias até que ele se recuperou.

- Quem és tu?" perguntou ele ao mago.

- Sou Artaban e vou a Jerusalém à procura daquele que vai nascer: O Príncipe da Paz e Salvador de todos os homens. Não posso me demorar mais, mas aqui está o restante do que tenho: pão, vinho e ervas curativas."

Assim, já era muito mais de meia noite e vários dias mais tarde quando Artaban montou de novo o seu cavalo e prosseguiu ao encontro de seus amigos.

Aos primeiros raios do sol, chegou ao lugar do encontro mas, os três magos já não mais ali estavam. Artaban desmontou e ansioso, estudou todo o horizonte. Nem sinal da caravana de camelos dos seus amigos! Então entre uma pilha de pedras achou um pergaminho e a mensagem:

- Não pudemos esperar mais, vamos ao encontro do Rei de Israel. Siga-nos através do deserto.

Então, Artaban continuou a via pelo deserto e finalmente chegou a Belém. Mas as ruas da pequena vila pareciam desertas. Pela porta aberta de uma casinha pobre, Artaban ouviu a voz de uma mulher cantando suavemente. Entrou e encontrou uma jovem mãe acalentando o seu bebê.

A Jovem mãe colocou o bebê no leito e preparou um almoço para o estranho hospede que veio à sua casa. Subitamente, ouviu-se uma grande comoção nas ruas: gritos de dor, o chorar de mulheres e o clamor:

- Soldados! os soldados de Herodes estão matando as nossas crianças!

A jovem mãe, branca de terror escondeu-se no canto mais escuro da casa, cobrindo o filho com o seu manto para que ele não acordasse e chorasse.

Mas, Artaban colocou-se em frente à porta da casa impedindo a entrada dos soldados. Um capitão aproximou-se para afastá-lo, mas Artaban, fitou o soldado um instante e lhe disse:

- Estou sozinho aqui, esperando para dar esta joia ao prudente capitão que vai me deixar em paz.

Os olhos do capitão brilharam com o desejo de possuir tal joia, então disse aos seus soldados:

- Marchem, Avante! Não há criança aqui!

E assim, Artaban, seguiu viagem passando por lugares onde a fome era grande. Fez a sua morada em cidades onde os doentes morriam na miséria. Em toda a população de um mundo cheio de angústia ele não achou ninguém para adorar, mas muitos para ajudar. Ele alimentou os que tinham fome, cuidou dos doentes, e confortou os prisioneiros...

E os anos passaram... muitos anos passaram. Os cabelos de Artaban já eram brancos como a neve nas montanhas. Velho, cansado e ainda um peregrino, estava novamente em Jerusalém onde havia estado muitas vezes na esperança de achar a família de Belém.

Os filhos de Israel estavam agora na cidade santa para a festa da Páscoa do Senhor e havia uma agitação e excitamento singular. Vendo um grupo de pessoas da sua terra, Artaban lhes perguntou o que se passava e para onde o povo se dirigia.

- Para o Gólgota! Dois ladrões vão ser crucificados e com eles, um homem chamado Jesus de Nazaré, que dizem, fez coisas maravilhosas entre o povo. Mas os sacerdotes exigiram a Sua morte, porque disse ser o Filho de Deus.

Artaban pensou: os caminhos de Deus são mais estranhos do que o pensamento dos homens. Agora é o tempo de oferecer a minha pérola para livrar da morte o meu Rei!

Ao seguir a multidão em direção ao portal de Damasco, um grupo de soldados apareceu arrastando uma jovem rapariga com vestes rasgadas e o rosto cheio de terror. Ao ver o mago, a jovem reconheceu-o como da sua própria terra e libertando se dos guardas atirou-se aos pés de Artaban e implorou:

- Tenha piedade, pelo Deus da pureza, salva-me! Meu pai era mercador na Pérsia, mas faleceu e agora vão me vender como escrava para pagar seus débitos! Salva-me!

Artaban tremeu. Era o velho conflito da sua alma entre a fé, a esperança e o impulso do amor. E agora? Uma coisa ele sabia: Salvar essa jovem indefesa era um gesto de amor. E não é o amor a luz da alma?

Ele tirou a pérola de junto ao seu coração. Nunca ela pareceu tão luminosa! Colocou-a na mão da moça e disse:

- Este é o teu pagamento, o último dos tesouros que guardei para o Rei!

Enquanto ele falava uma escuridão profunda envolveu a terra, que tremeu convulsivamente!

- O que tenho a temer, pensou ele, ...e para que viver? Não há mais esperança de encontrar o Rei, a procura terminou, eu falhei.”

Por 33 anos eu te procurei, mas nunca vi a tua face, nem te servi, meu Rei!

E uma voz suave veio dos céus.

- Em verdade, em verdade vos digo que quando o fizeste a um destes meus irmãos a mim o fizeste!

Uma alegria radiante iluminou a face calma de Artaban.

Um suspiro longo e aliviado saiu de seus lábios.

A viagem para ele havia terminado.

O quarto mago, Artaban, compreendeu que havia encontrado o seu Rei durante toda a sua vida!