quarta-feira, 14 de maio de 2014

Transformar

Quando recentemente fiz a leitura do capítulo 12 do Evangelho Segundo o Espiritismo, que fala sobre amar os inimigos, fiquei intrigada e algumas perguntas povoaram minha mente: 

Teria eu inimigos? E se os tenho, quem são?

Mas, afinal, o que caracteriza um inimigo? O que me faria considerar alguém um inimigo?

Seriam os meu inimigos aqueles contra quem guerreio?

Mas, não me percebo em guerras. Então, não tenho inimigos.

Mas, essa afirmação pode ser muito leviana e até perigosa. Não preciso estar em guerra para ter sentimentos negativos ocupando precioso espaço em meu coração e em meus pensamentos. Pequenas magoas, assuntos não resolvidos, irritações guardadas, antipatias alimentadas. Quanto de tudo isso pode estar abrigado dentro de mim, mesmo que não perceba ou externalize.

Então, seriam essas pessoas por quem tenho e nutro esses sentimentos meus inimigos? Seriam inimigos mesmo que eu não os enfrente em um campo de batalhas? Creio que sim. Pois energeticamente, estou em guerra. 

É preciso aprender a limpar o coração. É preciso aprender a olhar quem vejo como desafeto, como um irmão. Um irmão que, que como eu está vivendo uma experiencia encarnada neste planeta, portanto em processo evolutivo. Ele não é mais, nem menos que eu. 

Jesus, disse: Tendes ouvido o que foi dito: Amarás ao teu próximo e aborrecerás ao teu inimigo. Mas eu vos digo: Amai os vossos inimigos, fazei bem ao que vos odeia, e orai pelos que vos perseguem e caluniam, para serdes filhos de vosso Pai... (Mateus, V: 20, 43-47).

E se vós amais somente aos que vos amam, que merecimento é o que vós tereis? Pois os pecadores também amam os que os amam. E se fizerdes bem aos que vos fazem bem, que merecimento é o que vós tereis?  (Lucas, VI: 32-36).

Mas, afinal, o que seria amar a seus inimigos? O que Jesus intentava ao proferir essas palavras? Como amar aquele que julgo querer meu mal? Há no evangelho uma explicação, que a mim, apaziguou o coração:

Se o amor do próximo é o princípio da caridade, amar aos inimigos é a sua aplicação sublime, porque essa virtude constitui uma das maiores vitórias conquistadas sobre o egoísmo e o orgulho.

Não obstante, geralmente nos equivocamos quanto ao sentido da palavra amor, aplicada a esta circunstância. Jesus não pretendia, ao dizer essas palavras, que se deve ter pelo inimigo a mesma ternura que se tem por um irmão ou por um amigo. A ternura pressupõe confiança. Ora, não se pode ter confiança naquele que se sabe que nos quer mal.  Entre pessoas que desconfiam umas das outras, não pode haver os impulsos de simpatia existentes entre aquelas que comungam nos mesmos pensamentos. Não se pode, enfim, ter a mesma satisfação ao encontrar um inimigo, que se tem com um amigo.
Esse sentimento, por outro lado, resulta de uma lei física: a da assimilação e repulsão dos fluidos. O pensamento malévolo emite uma corrente fluídica que causa penosa impressão; o pensamento benévolo envolve-nos num eflúvio agradável. Daí a diferença de sensações que se experimenta, à aproximação de um inimigo ou de um amigo. Amar aos inimigos não pode, pois, significar que não se deve fazer nenhuma diferença entre eles e os amigos. Este preceito parece difícil, e até mesmo impossível de se praticar, porque falsamente supomos que ele prescreve darmos a uns e a outros o mesmo lugar no coração. Se a pobreza das línguas humanas nos obriga a usarmos a mesma palavra, para exprimir formas diversas de sentimentos, a razão deve fazer as diferenças necessárias, segundo os casos.
Amar aos inimigos, não é, pois, ter por eles uma afeição que não é natural, uma vez que o contato de um inimigo faz bater o coração de maneira inteiramente diversa que o de um amigo. Mas é não lhes ter ódio, nem rancor, ou desejo de vingança. É perdoá-los sem segunda intenção e incondicionalmente, pelo mal que nos fizeram. É não opor nenhum obstáculo à reconciliação. É desejar-lhes o bem em vez do mal. É alegrar-nos em lugar de aborrecer-nos com o bem que os atinge. É estender-lhes a mão prestativa em caso de necessidade. É abster-nos, por atos e palavras, de tudo o que possa prejudicá-los. É, enfim, pagar-lhes em tudo o mal com o bem, sem a intenção de humilhá-los. Todo aquele que assim fizer, cumpre as condições do mandamento: Amai aos vossos inimigos.

Essa é difícil tarefa e, creio, só pode ser realizada se eu conseguir reconhecer e aceitar o sentimento que tenho pelo outro e ter clareza de que o que sinto não traduz tudo o que ele é. O que sinto está dentro de mim e só por mim, com amor, pode ser transformado.

Termino com uma oração dos índios Lakota, que pode nos inspirar nessa jornada de reconhecimento e transformação do que habita em nós.

Ensina-me a confiar
Em meu coração
em minha mente
em minha intuição
na minha sabedoria interna
nos sentidos do meu corpo
nas bençãos do meu espírito

Ensina-me a confiar nisso tudo 
Para que possa entrar no meu espaço sagrado
E amar além do meu medo
E dessa forma
Caminhar em equilíbrio.


Arcanjo Miguel

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O Quarto Rei Mago

Quase que diariamente eu passo sob um viaduto que sustenta o trafego de automóveis, muitos deles de alto luxo, cujo preço daria para comprar moradia para as pessoas que fizeram dessa via seu teto. Veículos conduzidos por gente que, provavelmente, nem desconfia que logo abaixo há outras gentes necessitadas.

E quando falo em gente necessitada, não refiro-me apenas à matéria, mas a toda a sorte de valorosos "bens" que podemos compartilhar: um prato de comida, um olhar desprovido de julgamento, um pouco de tempo dedicado à escuta da expressão do outro, enfim dádivas tangíveis e intangíveis.

Porém, na maioria das vezes em que estamos concentrados em nossos afazeres, nossas preocupações, nossas buscas e até em nossos prazeres, tendemos a não perceber esse(a) a quem chamamos outro(a). Esse fenômeno parece-me típico de nossa época, cheia de seduções e convites para a manifestação do individualismo em detrimento da legitima expressão da individualidade que reconhece a si e ao tudo que está fora de si.

Mas, é tempo de fortalecer em nós a capacidade humana de fazer o bem, de genuinamente promover o encontro do próprio EU com o EU do(a) outro(a), de fazermos isso sem nos perdermos no(a) outro(a) e sem que o(a) outro(a) se perca em nós. Havendo apenas um reconhecimento de que somos parte de um todo, qualquer que seja a nossa condição socioeconômica.

A história que descreverei abaixo, extraída do livro O Quarto Rei Mago, de Henry Van Dyke, é um belo e inspirador exemplo de doação, de encontro genuíno com outros EUs. Talvez, em nosso tempo, não seja necessário abrir mão de tudo que nos é caro, mas desenvolver um olhar amoroso, privado de julgamentos já é um bom começo.

E conectado a esse tema, percebo as conhecidas palavras de São Paulo: “Se eu falar as línguas dos anjos; se tiver o dom de profecia, e penetrar todos os mistérios; se tiver toda a fé possível, a ponto de transportar montanhas, mas não tiver caridade, nada sou. Entre essas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade, a mais excelente é a caridade”. Paulo define a verdadeira caridade não somente na beneficência, mas no conjunto de todas as qualidades do coração, na bondade e na benevolência para com o(a) próximo(a).

E a história de Artaban, na minha opinião, corrobora essas palavras.

Artaban era médico e um homem de posses. Tinha a fisionomia de um sonhador, a mente de um sábio e um coração manso.

Seguidor de Zoroastro, numa noite se reuniu em conselho com nove membros da mesma seita e lhes falou sobre a nova estrela que vira e o seu desejo de segui-la. Disse-lhes:

- Os meus três amigos Gaspar, Melchior, Baltazar e eu, vimos a grande luz brilhante de uma nova estrela há vários dias e vamos sair juntos para Jerusalém para ver e adorar o Prometido, o Rei de Israel. Vendi a minha casa e tudo o que possuo e comprei estas jóias: uma safira, um rubi e uma pérola para oferecer como tributo ao Rei.

Artaban preparou o seu melhor cavalo e de madrugada saiu às pressas, pois, para encontrar no dia marcado com seus companheiros de viagem, que já estavam a caminho, ele precisava cavalgar noite e dia. Já estava escurecendo e ainda faltavam mais ou menos três horas de viagem para chegar ao ponto de encontro quando, na estrada, perto de umas palmeiras, o seu cavalo, pressentindo alguma coisa desconhecida, parou junto a um objeto escuro perto da última palmeira.

Artaban desmontou. A luz das estrelas revelou a forma de um homem caído. A sua pele estava seca e amarela e o frio da morte já o envolvia. E Artaban carregou-o para a sombra de uma palmeira e tratou-o por muitos dias até que ele se recuperou.

- Quem és tu?" perguntou ele ao mago.

- Sou Artaban e vou a Jerusalém à procura daquele que vai nascer: O Príncipe da Paz e Salvador de todos os homens. Não posso me demorar mais, mas aqui está o restante do que tenho: pão, vinho e ervas curativas."

Assim, já era muito mais de meia noite e vários dias mais tarde quando Artaban montou de novo o seu cavalo e prosseguiu ao encontro de seus amigos.

Aos primeiros raios do sol, chegou ao lugar do encontro mas, os três magos já não mais ali estavam. Artaban desmontou e ansioso, estudou todo o horizonte. Nem sinal da caravana de camelos dos seus amigos! Então entre uma pilha de pedras achou um pergaminho e a mensagem:

- Não pudemos esperar mais, vamos ao encontro do Rei de Israel. Siga-nos através do deserto.

Então, Artaban continuou a via pelo deserto e finalmente chegou a Belém. Mas as ruas da pequena vila pareciam desertas. Pela porta aberta de uma casinha pobre, Artaban ouviu a voz de uma mulher cantando suavemente. Entrou e encontrou uma jovem mãe acalentando o seu bebê.

A Jovem mãe colocou o bebê no leito e preparou um almoço para o estranho hospede que veio à sua casa. Subitamente, ouviu-se uma grande comoção nas ruas: gritos de dor, o chorar de mulheres e o clamor:

- Soldados! os soldados de Herodes estão matando as nossas crianças!

A jovem mãe, branca de terror escondeu-se no canto mais escuro da casa, cobrindo o filho com o seu manto para que ele não acordasse e chorasse.

Mas, Artaban colocou-se em frente à porta da casa impedindo a entrada dos soldados. Um capitão aproximou-se para afastá-lo, mas Artaban, fitou o soldado um instante e lhe disse:

- Estou sozinho aqui, esperando para dar esta joia ao prudente capitão que vai me deixar em paz.

Os olhos do capitão brilharam com o desejo de possuir tal joia, então disse aos seus soldados:

- Marchem, Avante! Não há criança aqui!

E assim, Artaban, seguiu viagem passando por lugares onde a fome era grande. Fez a sua morada em cidades onde os doentes morriam na miséria. Em toda a população de um mundo cheio de angústia ele não achou ninguém para adorar, mas muitos para ajudar. Ele alimentou os que tinham fome, cuidou dos doentes, e confortou os prisioneiros...

E os anos passaram... muitos anos passaram. Os cabelos de Artaban já eram brancos como a neve nas montanhas. Velho, cansado e ainda um peregrino, estava novamente em Jerusalém onde havia estado muitas vezes na esperança de achar a família de Belém.

Os filhos de Israel estavam agora na cidade santa para a festa da Páscoa do Senhor e havia uma agitação e excitamento singular. Vendo um grupo de pessoas da sua terra, Artaban lhes perguntou o que se passava e para onde o povo se dirigia.

- Para o Gólgota! Dois ladrões vão ser crucificados e com eles, um homem chamado Jesus de Nazaré, que dizem, fez coisas maravilhosas entre o povo. Mas os sacerdotes exigiram a Sua morte, porque disse ser o Filho de Deus.

Artaban pensou: os caminhos de Deus são mais estranhos do que o pensamento dos homens. Agora é o tempo de oferecer a minha pérola para livrar da morte o meu Rei!

Ao seguir a multidão em direção ao portal de Damasco, um grupo de soldados apareceu arrastando uma jovem rapariga com vestes rasgadas e o rosto cheio de terror. Ao ver o mago, a jovem reconheceu-o como da sua própria terra e libertando se dos guardas atirou-se aos pés de Artaban e implorou:

- Tenha piedade, pelo Deus da pureza, salva-me! Meu pai era mercador na Pérsia, mas faleceu e agora vão me vender como escrava para pagar seus débitos! Salva-me!

Artaban tremeu. Era o velho conflito da sua alma entre a fé, a esperança e o impulso do amor. E agora? Uma coisa ele sabia: Salvar essa jovem indefesa era um gesto de amor. E não é o amor a luz da alma?

Ele tirou a pérola de junto ao seu coração. Nunca ela pareceu tão luminosa! Colocou-a na mão da moça e disse:

- Este é o teu pagamento, o último dos tesouros que guardei para o Rei!

Enquanto ele falava uma escuridão profunda envolveu a terra, que tremeu convulsivamente!

- O que tenho a temer, pensou ele, ...e para que viver? Não há mais esperança de encontrar o Rei, a procura terminou, eu falhei.”

Por 33 anos eu te procurei, mas nunca vi a tua face, nem te servi, meu Rei!

E uma voz suave veio dos céus.

- Em verdade, em verdade vos digo que quando o fizeste a um destes meus irmãos a mim o fizeste!

Uma alegria radiante iluminou a face calma de Artaban.

Um suspiro longo e aliviado saiu de seus lábios.

A viagem para ele havia terminado.

O quarto mago, Artaban, compreendeu que havia encontrado o seu Rei durante toda a sua vida!