quarta-feira, 14 de maio de 2014

Transformar

Quando recentemente fiz a leitura do capítulo 12 do Evangelho Segundo o Espiritismo, que fala sobre amar os inimigos, fiquei intrigada e algumas perguntas povoaram minha mente: 

Teria eu inimigos? E se os tenho, quem são?

Mas, afinal, o que caracteriza um inimigo? O que me faria considerar alguém um inimigo?

Seriam os meu inimigos aqueles contra quem guerreio?

Mas, não me percebo em guerras. Então, não tenho inimigos.

Mas, essa afirmação pode ser muito leviana e até perigosa. Não preciso estar em guerra para ter sentimentos negativos ocupando precioso espaço em meu coração e em meus pensamentos. Pequenas magoas, assuntos não resolvidos, irritações guardadas, antipatias alimentadas. Quanto de tudo isso pode estar abrigado dentro de mim, mesmo que não perceba ou externalize.

Então, seriam essas pessoas por quem tenho e nutro esses sentimentos meus inimigos? Seriam inimigos mesmo que eu não os enfrente em um campo de batalhas? Creio que sim. Pois energeticamente, estou em guerra. 

É preciso aprender a limpar o coração. É preciso aprender a olhar quem vejo como desafeto, como um irmão. Um irmão que, que como eu está vivendo uma experiencia encarnada neste planeta, portanto em processo evolutivo. Ele não é mais, nem menos que eu. 

Jesus, disse: Tendes ouvido o que foi dito: Amarás ao teu próximo e aborrecerás ao teu inimigo. Mas eu vos digo: Amai os vossos inimigos, fazei bem ao que vos odeia, e orai pelos que vos perseguem e caluniam, para serdes filhos de vosso Pai... (Mateus, V: 20, 43-47).

E se vós amais somente aos que vos amam, que merecimento é o que vós tereis? Pois os pecadores também amam os que os amam. E se fizerdes bem aos que vos fazem bem, que merecimento é o que vós tereis?  (Lucas, VI: 32-36).

Mas, afinal, o que seria amar a seus inimigos? O que Jesus intentava ao proferir essas palavras? Como amar aquele que julgo querer meu mal? Há no evangelho uma explicação, que a mim, apaziguou o coração:

Se o amor do próximo é o princípio da caridade, amar aos inimigos é a sua aplicação sublime, porque essa virtude constitui uma das maiores vitórias conquistadas sobre o egoísmo e o orgulho.

Não obstante, geralmente nos equivocamos quanto ao sentido da palavra amor, aplicada a esta circunstância. Jesus não pretendia, ao dizer essas palavras, que se deve ter pelo inimigo a mesma ternura que se tem por um irmão ou por um amigo. A ternura pressupõe confiança. Ora, não se pode ter confiança naquele que se sabe que nos quer mal.  Entre pessoas que desconfiam umas das outras, não pode haver os impulsos de simpatia existentes entre aquelas que comungam nos mesmos pensamentos. Não se pode, enfim, ter a mesma satisfação ao encontrar um inimigo, que se tem com um amigo.
Esse sentimento, por outro lado, resulta de uma lei física: a da assimilação e repulsão dos fluidos. O pensamento malévolo emite uma corrente fluídica que causa penosa impressão; o pensamento benévolo envolve-nos num eflúvio agradável. Daí a diferença de sensações que se experimenta, à aproximação de um inimigo ou de um amigo. Amar aos inimigos não pode, pois, significar que não se deve fazer nenhuma diferença entre eles e os amigos. Este preceito parece difícil, e até mesmo impossível de se praticar, porque falsamente supomos que ele prescreve darmos a uns e a outros o mesmo lugar no coração. Se a pobreza das línguas humanas nos obriga a usarmos a mesma palavra, para exprimir formas diversas de sentimentos, a razão deve fazer as diferenças necessárias, segundo os casos.
Amar aos inimigos, não é, pois, ter por eles uma afeição que não é natural, uma vez que o contato de um inimigo faz bater o coração de maneira inteiramente diversa que o de um amigo. Mas é não lhes ter ódio, nem rancor, ou desejo de vingança. É perdoá-los sem segunda intenção e incondicionalmente, pelo mal que nos fizeram. É não opor nenhum obstáculo à reconciliação. É desejar-lhes o bem em vez do mal. É alegrar-nos em lugar de aborrecer-nos com o bem que os atinge. É estender-lhes a mão prestativa em caso de necessidade. É abster-nos, por atos e palavras, de tudo o que possa prejudicá-los. É, enfim, pagar-lhes em tudo o mal com o bem, sem a intenção de humilhá-los. Todo aquele que assim fizer, cumpre as condições do mandamento: Amai aos vossos inimigos.

Essa é difícil tarefa e, creio, só pode ser realizada se eu conseguir reconhecer e aceitar o sentimento que tenho pelo outro e ter clareza de que o que sinto não traduz tudo o que ele é. O que sinto está dentro de mim e só por mim, com amor, pode ser transformado.

Termino com uma oração dos índios Lakota, que pode nos inspirar nessa jornada de reconhecimento e transformação do que habita em nós.

Ensina-me a confiar
Em meu coração
em minha mente
em minha intuição
na minha sabedoria interna
nos sentidos do meu corpo
nas bençãos do meu espírito

Ensina-me a confiar nisso tudo 
Para que possa entrar no meu espaço sagrado
E amar além do meu medo
E dessa forma
Caminhar em equilíbrio.


Arcanjo Miguel

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O Quarto Rei Mago

Quase que diariamente eu passo sob um viaduto que sustenta o trafego de automóveis, muitos deles de alto luxo, cujo preço daria para comprar moradia para as pessoas que fizeram dessa via seu teto. Veículos conduzidos por gente que, provavelmente, nem desconfia que logo abaixo há outras gentes necessitadas.

E quando falo em gente necessitada, não refiro-me apenas à matéria, mas a toda a sorte de valorosos "bens" que podemos compartilhar: um prato de comida, um olhar desprovido de julgamento, um pouco de tempo dedicado à escuta da expressão do outro, enfim dádivas tangíveis e intangíveis.

Porém, na maioria das vezes em que estamos concentrados em nossos afazeres, nossas preocupações, nossas buscas e até em nossos prazeres, tendemos a não perceber esse(a) a quem chamamos outro(a). Esse fenômeno parece-me típico de nossa época, cheia de seduções e convites para a manifestação do individualismo em detrimento da legitima expressão da individualidade que reconhece a si e ao tudo que está fora de si.

Mas, é tempo de fortalecer em nós a capacidade humana de fazer o bem, de genuinamente promover o encontro do próprio EU com o EU do(a) outro(a), de fazermos isso sem nos perdermos no(a) outro(a) e sem que o(a) outro(a) se perca em nós. Havendo apenas um reconhecimento de que somos parte de um todo, qualquer que seja a nossa condição socioeconômica.

A história que descreverei abaixo, extraída do livro O Quarto Rei Mago, de Henry Van Dyke, é um belo e inspirador exemplo de doação, de encontro genuíno com outros EUs. Talvez, em nosso tempo, não seja necessário abrir mão de tudo que nos é caro, mas desenvolver um olhar amoroso, privado de julgamentos já é um bom começo.

E conectado a esse tema, percebo as conhecidas palavras de São Paulo: “Se eu falar as línguas dos anjos; se tiver o dom de profecia, e penetrar todos os mistérios; se tiver toda a fé possível, a ponto de transportar montanhas, mas não tiver caridade, nada sou. Entre essas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade, a mais excelente é a caridade”. Paulo define a verdadeira caridade não somente na beneficência, mas no conjunto de todas as qualidades do coração, na bondade e na benevolência para com o(a) próximo(a).

E a história de Artaban, na minha opinião, corrobora essas palavras.

Artaban era médico e um homem de posses. Tinha a fisionomia de um sonhador, a mente de um sábio e um coração manso.

Seguidor de Zoroastro, numa noite se reuniu em conselho com nove membros da mesma seita e lhes falou sobre a nova estrela que vira e o seu desejo de segui-la. Disse-lhes:

- Os meus três amigos Gaspar, Melchior, Baltazar e eu, vimos a grande luz brilhante de uma nova estrela há vários dias e vamos sair juntos para Jerusalém para ver e adorar o Prometido, o Rei de Israel. Vendi a minha casa e tudo o que possuo e comprei estas jóias: uma safira, um rubi e uma pérola para oferecer como tributo ao Rei.

Artaban preparou o seu melhor cavalo e de madrugada saiu às pressas, pois, para encontrar no dia marcado com seus companheiros de viagem, que já estavam a caminho, ele precisava cavalgar noite e dia. Já estava escurecendo e ainda faltavam mais ou menos três horas de viagem para chegar ao ponto de encontro quando, na estrada, perto de umas palmeiras, o seu cavalo, pressentindo alguma coisa desconhecida, parou junto a um objeto escuro perto da última palmeira.

Artaban desmontou. A luz das estrelas revelou a forma de um homem caído. A sua pele estava seca e amarela e o frio da morte já o envolvia. E Artaban carregou-o para a sombra de uma palmeira e tratou-o por muitos dias até que ele se recuperou.

- Quem és tu?" perguntou ele ao mago.

- Sou Artaban e vou a Jerusalém à procura daquele que vai nascer: O Príncipe da Paz e Salvador de todos os homens. Não posso me demorar mais, mas aqui está o restante do que tenho: pão, vinho e ervas curativas."

Assim, já era muito mais de meia noite e vários dias mais tarde quando Artaban montou de novo o seu cavalo e prosseguiu ao encontro de seus amigos.

Aos primeiros raios do sol, chegou ao lugar do encontro mas, os três magos já não mais ali estavam. Artaban desmontou e ansioso, estudou todo o horizonte. Nem sinal da caravana de camelos dos seus amigos! Então entre uma pilha de pedras achou um pergaminho e a mensagem:

- Não pudemos esperar mais, vamos ao encontro do Rei de Israel. Siga-nos através do deserto.

Então, Artaban continuou a via pelo deserto e finalmente chegou a Belém. Mas as ruas da pequena vila pareciam desertas. Pela porta aberta de uma casinha pobre, Artaban ouviu a voz de uma mulher cantando suavemente. Entrou e encontrou uma jovem mãe acalentando o seu bebê.

A Jovem mãe colocou o bebê no leito e preparou um almoço para o estranho hospede que veio à sua casa. Subitamente, ouviu-se uma grande comoção nas ruas: gritos de dor, o chorar de mulheres e o clamor:

- Soldados! os soldados de Herodes estão matando as nossas crianças!

A jovem mãe, branca de terror escondeu-se no canto mais escuro da casa, cobrindo o filho com o seu manto para que ele não acordasse e chorasse.

Mas, Artaban colocou-se em frente à porta da casa impedindo a entrada dos soldados. Um capitão aproximou-se para afastá-lo, mas Artaban, fitou o soldado um instante e lhe disse:

- Estou sozinho aqui, esperando para dar esta joia ao prudente capitão que vai me deixar em paz.

Os olhos do capitão brilharam com o desejo de possuir tal joia, então disse aos seus soldados:

- Marchem, Avante! Não há criança aqui!

E assim, Artaban, seguiu viagem passando por lugares onde a fome era grande. Fez a sua morada em cidades onde os doentes morriam na miséria. Em toda a população de um mundo cheio de angústia ele não achou ninguém para adorar, mas muitos para ajudar. Ele alimentou os que tinham fome, cuidou dos doentes, e confortou os prisioneiros...

E os anos passaram... muitos anos passaram. Os cabelos de Artaban já eram brancos como a neve nas montanhas. Velho, cansado e ainda um peregrino, estava novamente em Jerusalém onde havia estado muitas vezes na esperança de achar a família de Belém.

Os filhos de Israel estavam agora na cidade santa para a festa da Páscoa do Senhor e havia uma agitação e excitamento singular. Vendo um grupo de pessoas da sua terra, Artaban lhes perguntou o que se passava e para onde o povo se dirigia.

- Para o Gólgota! Dois ladrões vão ser crucificados e com eles, um homem chamado Jesus de Nazaré, que dizem, fez coisas maravilhosas entre o povo. Mas os sacerdotes exigiram a Sua morte, porque disse ser o Filho de Deus.

Artaban pensou: os caminhos de Deus são mais estranhos do que o pensamento dos homens. Agora é o tempo de oferecer a minha pérola para livrar da morte o meu Rei!

Ao seguir a multidão em direção ao portal de Damasco, um grupo de soldados apareceu arrastando uma jovem rapariga com vestes rasgadas e o rosto cheio de terror. Ao ver o mago, a jovem reconheceu-o como da sua própria terra e libertando se dos guardas atirou-se aos pés de Artaban e implorou:

- Tenha piedade, pelo Deus da pureza, salva-me! Meu pai era mercador na Pérsia, mas faleceu e agora vão me vender como escrava para pagar seus débitos! Salva-me!

Artaban tremeu. Era o velho conflito da sua alma entre a fé, a esperança e o impulso do amor. E agora? Uma coisa ele sabia: Salvar essa jovem indefesa era um gesto de amor. E não é o amor a luz da alma?

Ele tirou a pérola de junto ao seu coração. Nunca ela pareceu tão luminosa! Colocou-a na mão da moça e disse:

- Este é o teu pagamento, o último dos tesouros que guardei para o Rei!

Enquanto ele falava uma escuridão profunda envolveu a terra, que tremeu convulsivamente!

- O que tenho a temer, pensou ele, ...e para que viver? Não há mais esperança de encontrar o Rei, a procura terminou, eu falhei.”

Por 33 anos eu te procurei, mas nunca vi a tua face, nem te servi, meu Rei!

E uma voz suave veio dos céus.

- Em verdade, em verdade vos digo que quando o fizeste a um destes meus irmãos a mim o fizeste!

Uma alegria radiante iluminou a face calma de Artaban.

Um suspiro longo e aliviado saiu de seus lábios.

A viagem para ele havia terminado.

O quarto mago, Artaban, compreendeu que havia encontrado o seu Rei durante toda a sua vida!

segunda-feira, 11 de março de 2013

O certo, o errado e o bom

Quando li o livro A Alma Imoral, do rabino Nilton Bonder e assisti à peça baseada nessa obra, muitas coisas chamaram minha atenção e constantemente me provocam reflexões. Uma das passagens faz uma referência às escolhas que fazemos baseados no que é certo ou errado. Nossa tendência é optar pelo consideramos certo, mas a parábola que relato agora nos traz outra opção: 

Certa vez, uma mulher muito pobre, já sem recursos para alimentar os filhos e o marido doente, recebe como doação uma galinha. Porém, a ave não havia sido criada sob os preceitos da religião judaica. Então, ela dirige-se à sinagoga para consultor ao rabino sobre a possibilidade de preparar a refeição utilizando-a como ingrediente. O rabino informa que precisará estudar o caso e pede que ela aguarde a recomendação. A mulher volta para sua casa e o religioso vai à sala de estudos para avaliar a questão. Durante horas ele lê o Torá e olha para galinha. Depois de longa reflexão, chama sua esposa e pede que leve a galinha para a senhora e que diga que seria errado preparar qualquer alimento com aquele animal. 

A esposa atende ao pedido do marido e vai até a casa da pobre senhora. Chegando lá, ela observa a situação de penúria pela qual passa a família. As crianças magras e com aparência de famintas, o marido entrevado no leito, sem forças para trabalhar e conseguir sustentar mulher e filhos. Ela, então, olha profundamente nos olhos da mulher e diz, pode preparar um bom caldo com essa galinha. 

Quando retorna para casa o marido pergunta: 

- Fez o que mandei? Disse para que ela não cozinhasse a ave? 

A esposa respondeu: 

- Meu senhor, eu disse para ela cozinhar a ave. 

O rabino rebateu: 

- Mas, eu não havia dito que era errado? Eu estudei profundamente o Torá e não era certo utilizar aquele animal como alimento. 

A esposa explicou: 

- Meu senhor, eu o observei enquanto estudava e percebi que olhava para o Torá e olhava para a galinha. Pois, quando cheguei na casa daquela senhora, eu olhei para a galinha e olhei para a família, então decidi pelo bom, mesmo que parecesse errado. 

Embora essa história refira-se a um dos livros sagrados dos judeus e não ao Evangelho de Jesus, inicio minha reflexão com ela porque em essência nos fala sobre a nossa capacidade de interpretação e de condução de nossos atos. 

Há uma passagem contida no Capitulo 18 do Evangelho segundo o Espiritismo (Muitos serão os chamados e poucos os escolhidos), que muito pode nos ensinar: 

Todos os que confessam a missão de Jesus, dizem: Senhor, Senhor! Mas de que vale chamá-lo Mestre ou Senhor, quando não se seguem os seus preceitos? São cristãos esses que o honram através de atos exteriores de devoção, e ao mesmo tempo sacrificam no altar do egoísmo, do orgulho, da cupidez e de todas as suas paixões? São seus discípulos esses que passam os dias a rezar, e não se tornam melhores, nem mais caridosos, nem mais indulgentes para com os seus semelhantes? Não, porque, à semelhança dos fariseus, têm a prece nos lábios e não no coração. Servindo-se apenas das formas, podem impor-se aos homens, mas não a Deus. 

...Para vós, haverá choro e ranger de dentes, pois o Reino de Deus é para os que são mansos, humildes e caridosos. Não espereis dobrar a justiça do Senhor pela multiplicidade de vossas palavras e de vossas genuflexões. A única via que está aberta, para alcançardes a graça em sua presença, é a da prática sincera da lei do amor e da caridade.” 

E para fazer a caridade temos que nos pautar nas palavras de Jesus, mas não nos guiar cegamente pelos dogmas que durante séculos foram se acumulando a partir da equivocada e, muitas vezes, desvirtuada interpretação do que o Mestre nos disse. É preciso fazer uso da nossa faculdade anímica do pensar para ler e interpretar a leitura com criticidade, mas sobretudo é preciso aprender a ouvir o próprio coração. Nosso cérebro consegue distinguir o certo do errado, porém é nosso sentir que tem a capacidade de reconhecer o que é bom. Mas, é importante ficar claro que quando falo do sentir, não falo do mundo das emoções fortes, das paixões. É fundamental não confundir a capacidade de amar com esse universo de sensações. Ao falar do sentir refiro-me a abertura de um canal de percepção que vai muito alem do que nossa capacidade cognitiva pode alcançar. E esse canal só se abre quando o genuíno amor ao próximo se manifesta em nós, assim como se manifestou na mulher do rabino. Sim, foi por amor que ela desobedeceu ao marido, amor ao próximo, desprovido de medo, interesse ou julgamento. 

Acredito que somente através desse sentir amoroso que podemos nortear as nossas ações voltadas para o bem. Então, ouso dizer que a leitura do Evangelho deve ser realizada com os olhos do coração. Todas as palavras do Mestre contem lições importantíssimas que só poderão ser compreendidas se soubermos balancear nosso pensar e nosso sentir. Apenas dessa forma, nossas ações revelarão o que temos de melhor em nós e, assim, poderemos praticar a verdadeira caridade. 

O Evangelho Segundo o Espiritismo, no capitulo 15 (Fora da caridade não há salvação) nos diz: 

São Paulo compreendeu tão profundamente esta verdade, que diz: “Se eu falar as línguas dos anjos; se tiver o dom de profecia, e penetrar todos os mistérios; se tiver toda a fé possível, a ponto de transportar montanhas, mas não tiver caridade, nada sou. Entre essas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade, a mais excelente é a caridade”. Coloca, assim, sem equívoco, a caridade acima da própria fé. Porque a caridade está ao alcance de todos, do ignorante e do sábio, do rico e do pobre; e porque independe de toda a crença particular. 

E faz mais: define a verdadeira caridade; mostra-a, não somente na beneficência, mas no conjunto de todas as qualidades do coração, na bondade e na benevolência para com o próximo. 

Para finalizar, gostaria de compartilhar um poema de Rudolf Steiner, que pode nos inspirar na busca pelo equilíbrio de nossas forças anímicas. 

No pensar, lucidez 
No sentir, afeição 
No querer, ponderação
Se eu aspirar estas três, 
então poderei esperar 
saber orientar-me 
corretamente nas trilhas da vida, 
frente a corações humanos, 
no âmbito do dever. 
Pois, lucidez provém da alma, 
e afeição mantém o calor do espírito 
ponderação revigora a força vital. 
E tudo isto, aspirado na confiança em Deus 
conduz, nos caminhos humanos, 
a bons e seguros passos na vida. 


Pintura: Alfred Lakos (Rabino lendo)

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Felicidade

Reflexões baseadas na leitura do Capítulo 10 do Evangelho Segundo o Espiritismo: Bem aventurados os aflitos. 

Tenho refletido sobre uma tendência de nossa época: uma busca desenfreada e pouco consciente pela felicidade. Mas, afinal o que significa ser feliz? 

Parece-me pueril acreditar que felicidade completa seja possível, afinal estamos sujeitos às alternâncias da vida, que nos apresenta constantes desafios, nos presenteia com situações que envolvem alegrias e desventuras. Muitas vezes, temos experiências que nos causam profundo contentamento e ao mesmo tempo, geram desconforto ou tristeza em outras pessoas. E o inverso, também, é verdadeiro. E como ser realmente feliz sem me conectar como o outro, tentando equilibrar o atendimento das necessidades mutuamente? 

Além disso, percebo que nessa busca pela felicidade instantânea, corremos o risco de ficar na superfície de nossas existências. Podemos nos apegar a bálsamos para anestesiar nossas profundas dores e não investigar com coragem a origem do que nos aflige. E assim, seguimos, cobrindo as feridas com o unguento das ilusões: um carro novo, uma viagem, roupas novas, amores novos, a mesa constante de um bar e outros tanto paliativos às dores da alma. 

Na verdade, não estou pregando o abrir mão de prazeres e facilidades que a vida terrena nos permite, mas de ampliar a consciência sobre nossas reais necessidades e de não nos entregarmos cegamente ao sistema que, muitas vezes, nos aprisiona com algemas de ouro ou que pensamos ser de ouro. 

Seria possível ser verdadeiramente feliz sem a consciência do que realmente somos e precisamos nessa jornada? Considerando essa mistura que envolve sentimentos e sensações agradáveis com angustias e desencanto, situações de pura ventura alternadas com infortúnios, o que faria cada um de nós feliz? O que faria cada um de nós serenar o coração diante de uma frustração e tentar compreender a lição embutida nessa situação? 

Será que percebemos o quanto nos atormentamos voluntariamente, muitas vezes, apenas porque nossas expectativas de obter um balsamo foram frustradas?

No Evangelho Segundo o Espiritismo o espírito Fénelon nos fala sobre os Tormentos voluntários. 

"O homem está incessantemente à procura da felicidade, que lhe escapa a todo instante, porque a felicidade sem mescla não existe na Terra. Entretanto, apesar das vicissitudes que formam o inevitável cortejo desta vida, dele poderia pelo menos gozar de uma felicidade relativa. Mas, ele a procura nas coisas perecíveis, sujeitas às mesmas vicissitudes, ou seja, nos gozos materiais, em vez de buscá-la nos gozos da alma, que constituem uma antecipação das imperecíveis alegrias celestes. Em vez de buscar a paz do coração, única felicidade verdadeira neste mundo, ele procura com avidez tudo o que pode agitá-lo e perturbá-lo. E, coisa curiosa, parece criar de propósito os tormentos, que só a ele cabia evitar. 

Quantos tormentos, pelo contrário, consegue evitar aquele que sabe contentar-se com o que possui, que vê sem inveja o que não lhe pertence, que não procura parecer mais do que é"? 

Pessoalmente, acredito que uma das maiores fontes de infelicidade tem raiz nesse desejo, muitas vezes inconsciente, de ser algo que não se é, de ter o que não se tem, de apego ao passado ou olhares para o futuro. A dificuldade de viver o agora, com tudo o que ele apresenta pode ser o nascedouro das insatisfações. Escrevi uma poesia na tentativa de traduzir essas minhas inquietações:

Às vezes, na ânsia de ser feliz me perco 
Quero o não tido e me projeto adiante 
Busco lá trás alegria antiga 
Percebo a falta e à bonança eu cego 
Perco o momento em que o botão floresce 
A gota de orvalho que a manhã abriga 
A beleza da vida que cresce 
O sorriso que espontâneo a mim chega 
O brilho manso do sol que me aquece 
O calor do abraço que me acolhe 
O afeto que vem num olhar profundo 
Pequenas coisas que o agora entrega 
Grandes dádivas que a vida oferece 
Doses diárias de felicidade 
Que se desatento desmereço o momento 
Que se descuido não reconheço a prenda 
Mas, se me rendo e deixo tudo chegar 
A felicidade poderei vivenciar 
Hoje, aqui, agora 
Amanhã, depois, outrora 

É preciso ser feliz sem demora, mas com consciência. Valorizar tudo o que a vida nos proporciona, mesmo que aparentemente não seja motivo de alegria. 

Rudolf Steiner certa vez disse: "Alegrias são dádivas do destino, que demonstram seu valor no presente. Sofrimentos, ao contrário, são fontes do conhecimento cujo significado se mostra no futuro". 

Esse talvez seja nosso grande desafio, reconhecer as alegrias, agradecendo sempre a oportunidade de vivenciá-las e aceitar que eventuais dores tem sua razão de ser, mas não se entregar ao sofrimento, caso contrário poderemos não compreender seu significado. Muitas vezes, temos que viver o luto, seja pela partida de alguém querido, seja por um relacionamento que se finda, seja pelo emprego perdido. Mas, a vivência desse luto deve ter prazo, pois essas experiencias de perda não ocorrem para nos causar infelicidade, mas sim para nos recolocar no caminho a que estamos destinados a trilhar.

E para ser feliz nesse plano, não podemos esquecer que "não somos seres humanos vivendo uma experiência espiritual, somos seres espirituais vivendo uma experiência humana", como nos disse o filósofo francês Teilhard de Chardin.

Como seres espirituais, vivendo uma experiência humana temos que aprender a ser felizes dentro das possibilidades que essa existência oferece. E é como Fénelon, nos disse "a felicidade sem mescla não existe na Terra".

Então, creio seria oportuno seguir o lema dos Beneditinos, que dizem: ora e labora. Orar e nos conectar com nosso Eu Espiritual para compreender quem somos e do que realmente carecemos para sermos felizes e aí, então, laborar para alcançar a dádiva da realização terrena. 

Que sejamos conscientes, que sejamos felizes! 


segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Tirando a venda

Reflexões baseadas na leitura do Capítulo 10 do Evangelho Segundo o Espiritismo: Bem aventurados os que são misericordiosos. 

Peço sempre ao meu mentor que me inspire e que me ajude a enxergar além do que meus olhos físicos permitem. Para que possa identificar a que estou cega, o que ainda não consigo enxergar. A que me permita admitir o que finjo não ver. Sim, há muito que já enxerguei, mas a mudança exige de mim um esforço que ainda não me dispus a fazer, então faço de conta que não vi e faço ouvidos moucos aos pedidos da minha alma. E imagino que não sou a única a agir dessa forma. 

Quantos de nós não incorre no erro a que Jesus se referiu quando falou: falou: Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão, e não vês a trave no teu olho? Ou como dizes a teu irmão: Deixa-me tirar-te do teu olho o cisco, quando tens no teu uma trave? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então verás como hás de tirar o argueiro do olho de teu irmão. (Mateus, VII: 3-5). 

Quando leio essas palavras de Jesus, entendo que não é possível ajudar o outro, portanto ser misericordioso, se antes não tiver me trabalhado interiormente para remover as traves que me impedem de ver além da superfície. 

Ainda sobre enxergar, o Mestre falou: Porventura pode um cego guiar outro cego? Não cairão ambos no barranco? 

Sinto que esse é um dos grandes desafios de desenvolvimento, enxergar além do obvio, além da ponta do iceberg. E a maior parte desse iceberg está dentro de nós mesmos. 

Quanto há em nós que desconhecemos? O quanto nos surpreende a visão que os outros têm sobre nós? O quanto negamos do que somos e, muitas vezes, nos falta coragem para aceitar nossas limitações. E outras, até por baixa autoestima não reconhecemos os talentos que clamam para serem colocados a serviço do mundo. 

Sim, acredito que existe uma tendência de ficar na superfície. É, aparentemente, mais fácil. E talvez, escolhemos ficar na superfície, para evitar dores. Mas é tentativa vã, pois a dor de não se enxergar, mais cedo ou mais tarde nos alcança. E o pior, pode ser uma dor que sentimos sem identificar a fonte, daí pode ficar mais difícil encontrar a cura. 

Mas, por termos livre-arbítrio, podemos nublar nossos olhos o quanto quisermos e culpar a vida e os outros pelos nossos infortúnios, mas dessa forma entregamos nosso destino e nossa evolução a mãos alheias. Immanuel Kant, um filosofo alemão, do século XVIII, disse que Você é livre no momento em que não busca fora de si mesmo alguém para resolver os seus problemas. Eu acredito que não há outra forma de resolver nossas questões que não passe pelo autoconhecimento. 

E para isso é preciso tirar a trave do olho. Reconhecer que há muito a ser desvendado sobre nossa alma, sobre nossos anseios, sentimentos, sobre nossa missão nessa existência. 

Sinto que enquanto não tivermos a coragem para olhar profundamente para nós mesmos, não poderemos nos dispor a julgar ninguém mais. E aí, há um contraponto, pois acredito que quando mais nos conhecermos internamente, menos teremos a tendência de julgar os outros e aí poderemos desenvolver a compaixão. Pensando assim, o julgamento, só existe como forma de nos sustentarmos em nossas crenças arraigadas, aquelas velhas, rotas que alicerçam e justificam o nosso jeito de viver e gera pouco espaço para a mudança, para evolução. Bom seria que todas as certezas fossem provisórias, para que possamos nos surpreender com o que encontramos dentro de nós e sintamos impulso de transformação. E para amolecer nossas certezas, é preciso investir em autoconhecimento. É preciso tirar a trave do olho. 

Ainda neste capítulo há uma interpretação que fala que um dos caprichos da humanidade é ver cada qual o mal alheio antes do próprio. Para julgar-se a si mesmo, seria necessário poder mirar-se num espelho, transportar-se de qualquer maneira para fora de si, e considerar-se como outra pessoa, perguntando: Que pensaria eu, se visse alguém fazendo o que faço? 

Existe um exercício meditativo, que confesso faço com menos diligencia do que deveria, mas muito interessante. Consiste em antes de dormir fazer uma retrospectiva do dia, passando evento por evento como se fosse um espectador e não o protagonista, cuidando para evitar o julgamento. A ideia é só “assistir” o dia, reconhecer os atos e só dormir depois que chegar ao primeiro momento do dia. É uma forma eficaz de se enxergar, mas é preciso disciplina e coragem. Duas condições básicas para o autoconhecimento. 

E voltando à pergunta de Jesus Porventura pode um cego guiar outro cego? Não cairão ambos no barranco? É de se supor que ele, como habitualmente fazia, tenha usado o recurso da metáfora. Não era de cegueira física que ele falava. Era a cegueira da alma, da incapacidade de enxergar-se, reconhecer-se. E o barranco, a que será que ele se referia? E quais seriam os barrancos de nosso tempo? 

E junto a essas inquietações, chegam a mim uma serie de perguntas e desejos, que transformei em poesia e gostaria de compartilhar: 


O que cega meus olhos? 
Seria a vaidade incontida? 
Seriam os infundados medos? 
Seriam as virtudes enaltecidas? 
Ou apenas a venda tecida em cisma e orgulho? 
Quero afastar o que me cerra os olhos 
Tudo o que me impede de viver o que sou 
Tudo o que é capaz de sombrear meu campo florido 
Tudo que me envolve e esmaece as cores do que vivo 
Eu quero ver a imperfeição para vislumbrar o caminho 
Reconhecer na dor o que me ensina a ser 
Para viver o nítido, puro e inquebrantável amor.


Vamos tirar a venda?